Por Laryssa Borges /Veja
Publicado 04/10/2024
O capelão Antônio Gomes da Silva tinha problemas nas pernas, mancava, usava uma bengala para ajudar na locomoção e estava interessado em comprar uma fazenda em Mato Grosso.
Foi assim que Roberto Zampieri, um conhecido advogado de Cuiabá, foi apresentado ao seu algoz um mês antes de morrer. Em dezembro do ano passado, ele encerrou o expediente no início da noite, como de costume, fechou o escritório, caminhou até a rua, entrou no carro, mas dessa vez não teve tempo de acionar a partida.
O coxo, que já estava de tocaia, se moveu com surpreendente agilidade.
Em segundos, aproximou-se, tirou uma arma de dentro de uma caixa de papelão, disparou doze vezes e fugiu — correndo.
Com a ajuda de câmeras de segurança, a polícia identificou e prendeu o assassino, na verdade, um pistoleiro de aluguel. O crime parecia esclarecido, mas uma descoberta meses depois provocou uma enorme reviravolta no caso.
O advogado morto era membro ativo de uma rede que subornava juízes e desembargadores e negociava decisões judiciais até mesmo no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a segunda Corte mais importante do país.
Em sigilo, a Polícia Federal está investigando a venda de sentenças no gabinete de quatro ministros do STJ. A pista que colocou delegados e agentes no rastro do que pode se transformar num escândalo de corrupção em Brasília estava na cena do crime de Cuiabá — um celular caído no chão do carro, próximo ao corpo do advogado. O telefone pertencia a Zampieri.
Como manda o protocolo, os peritos lacraram o aparelho. Na tela de início, havia o alerta de 39 mensagens de WhatsApp não lidas. A última delas tinha sido enviada por alguém identificado como “Des Sebastião”. Nada aparentemente relevante. Logo depois, porém, percebeu-se que havia algo estranho.
Os familiares do morto tentaram impedir a apreensão do aparelho. Sem sucesso, queriam evitar que os policiais acessassem os dados, argumentando que havia ali segredos profissionais entre advogado e clientes. Juízes e desembargadores de Mato Grosso também se mobilizaram com o mesmo objetivo. Um magistrado chegou a enviar um preposto à delegacia e conseguiu reaver o celular.
O aparelho, de fato, guardava segredos profissionais que explicam tamanha movimentação. Em busca de alguma informação que pudesse ajudar a elucidar o assassinato, os investigadores encontraram diálogos que versavam sobre compra de sentenças, comprovantes de repasses financeiros a juízes do estado e provas cabais de corrupção em gabinetes do Superior Tribunal de Justiça.
Para preservar o material, promotores do Ministério Público de Mato Grosso fizeram uma cópia: a Corte está investigando a participação de funcionários e a encaminharam ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Os documentos encontrados revelam que decisões dos ministros Isabel Gallotti, Og Fernandes, Nancy Andrighi e Moura Ribeiro foram vendidas.
Diante das evidências, o CNJ encaminhou o caso à Polícia Federal e também à presidência do STJ. As investigações estão em andamento, não há qualquer evidência de que os ministros sabiam ou se beneficiaram do esquema, mas não há dúvidas de como ele funcionava.
Rascunhos das decisões dos magistrados, as chamadas minutas, eram repassados pelos funcionários do gabinete a lobistas e advogados. Com o material em mãos, o grupo procurava a parte interessada no processo e fazia a oferta. Se a propina fosse paga, a minuta se transformava no veredicto do ministro.
Caso contrário, era modificada e beneficiava a parte contrária. As conversas, os documentos e os comprovantes de pagamento encontrados no celular de Zampieri revelam que o comércio de sentenças operava há pelo menos quatro anos.
Em um dos diálogos, um lobista identificado como Andreson Oliveira Gonçalves encaminha a Zampieri a “minuta” de uma decisão que poderia ser tomada por um dos ministros citados em um processo de interesse da quadrilha. Combinado o pagamento, dias depois, veio o veredicto. “Até a vírgula é igual” , comemorou o lobista, ao comparar o rascunho e a decisão final.
Semanas depois, o mesmo lobista enviou um áudio ao parceiro em tom ameaçador. O motivo: o pagamento ao servidor do STJ estava atrasado e poderia comprometer a continuidade do esquema. “Zamp, não pode brincar com eles, não. Falou no dia, tem que cumprir” , reclamou.
Em uma segunda mensagem, referindo-se a um outro processo em tramitação no STJ, Andreson cobra o pagamento de 50 000 reais ao “amigo” e avisa que em breve estaria no banco para fazer uma transferência que consolidaria a compra de uma nova decisão judicial.. “Nunca falei de ministro do STJ, nem assessor, nem chefe de gabinete de ministro com Zampieri, mesmo porque não os conheço.
Se eu conhecesse alguém eu faria uma coisa dessa? Deus me livre” , disse Andreson a VEJA.
Cada ministro do Superior Tribunal de Justiça tem à disposição uma equipe de assessores de gabinete. Cabe a eles, entre outras atividades, preparar as minutas que subsidiam as decisões do magistrado, através da análise de documentos nos autos. Se mal-intencionados, eles podem de fato manipular essas informações e induzirem os magistrados a erro. Por isso, sigilo e confiança são fundamentais nessa relação, mas, ao que parece, ambos foram quebrados. VEJA teve acesso a quatro minutas que foram compartilhadas pela quadrilha. Encontradas no celular do advogado morto, elas estão balizando as investigações da PF sobre a atuação dos funcionários do STJ na venda de decisões. São casos cujos valores ultrapassam 100 milhões de reais.
Determinado ministro e até o desfecho sobre uma busca e apreensão no âmbito da Operação Faroeste, que apura a participação de desembargadores do Tribunal de Justiça da Bahia em crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. “Esses documentos não deixam sombra de dúvida de que as minutas eram repassadas a terceiros e, depois de negociadas, se transformavam em decisões” , diz uma autoridade com acesso ao caso.
Há cerca de dois meses, depois da notificação do CNJ, os quatro ministros citados nas mensagens foram convocados para uma reunião. Na ocasião, a então presidente do STJ, Maria Thereza de Assis Moura, informou os colegas sobre o caso, ressaltou que a suspeita recai sobre os assessores e anunciou a abertura de uma investigação interna, que caminharia em paralelo às apurações da PF.
Ao ouvirem o relato, dois magistrados, indignados, disseram que colocariam a mão no fogo pela equipe. Os outros dois consideraram a possibilidade de demitir imediatamente os subordinados.
Em nota, o STJ confirma que está investigando o caso, mas que não pode adiantar nenhuma informação. “Os fatos narrados pela reportagem já são objeto de investigação administrativa e penal. Tão logo chegaram ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), foram instaurados sindicância, já parcialmente concluída, e processo disciplinar (PADs). Além disso, a pedido do STJ, os fatos também se encontram sob apuração da Polícia Federal. Informações complementares não podem, neste momento, ser fornecidas para não prejudicar as diligências em curso.” O CNJ apura o envolvimento de um juiz e já afastou dois desembargadores de Mato Grosso.
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