Parece que da etimologia da palavra “carnaval” a única coisa certa é que se refere a carne. Seria para designar a abstinência de carne da quaresma? Ou, como queria o pai italiano de minha amiga Zélia Gattai, para afirmar que “o que vale é a carne”, jogando a origem da festa para as farras romanas ou germânicas, quando não a uma verdadeira bacanal grega? Essa origem europeia pode ser incontestável, mas basta ver a tristeza do carnaval de Veneza ou a imitação que são os carnavais que pipocam mundo afora para saber que carnaval como sinônimo de alegria tem origem bem brasileira, isto é, africana.

 

Pois se os negros não tivessem tomado conta da festa — e incorporado, sem preconceito, todas as etnias, afinal há rainha da bateria nissei —, ela não seria essa bagunça organizada que a faz única no mundo. Que me desculpem os mardi gras, os carnavais do Caribe e de toda a América Latina, todos dominados pela herança dos afrodescendentes, mas nos últimos cem anos o carnaval é nosso.

 

É verdade que um dia, Presidente da República, visitei o Cabo Verde. Ia comigo o casal Zélia Gattai e Jorge Amado. Em homenagem ao Brasil houve festa e se aquela alegria não era carnaval… Voltei-me para o casal e disse: “Vejam, é a Bahia! Foi daqui que a alegria embarcou para Salvador!”

 

O sincretismo religioso, tolerado pela Igreja Católica com boa ou má intenção, conseguiu o que é raro: que as festas religiosas sejam dominadas pela alegria, como recomendava São Paulo, ou como escreveu Paul Claudel — “não temos outro dever que não seja a alegria” —, ou como está no “Memorial” de Pascal — “alegria, alegria, alegria, lágrimas de alegria.” Nas nossas alegrias estamos mais para o riso que para a lágrima, e a lavagem do Bonfim se faz na dança e na água, e essa não vem dos olhos, mas das quartinhas com que as baianas perfumam as calçadas. Depois corre muita água, mas é da que passarinho não bebe.

 

Com a festa do Senhor do Bonfim, na quinta-feira que antecede o segundo domingo depois da Epifania — para que simplificar, se podemos confundir? — começa o carnaval na Bahia. E por mais que tentemos no resto do Brasil, mesmo no Rio de Janeiro que ensina samba em escola, mesmo em São Paulo que faz tudo maior, em nenhum lugar do mundo há tanta disposição para festejar quanto na velha cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos. É de todos os santos, afinal.

 

Não quer dizer que o dia da festa não tenha vindo da terça-feira-de-carnaval — gorda — se estendendo para segunda, domingo, sábado, sexta-feira-de-carnaval, e aí já foi pegando as semanas em bloco. E para terminar invadiram primeiro a quarta-feira-de-cinzas, que é de abstinência de carne, mas, com tanto peixe brincando, já não se sabe o que vale e o que não vale, e depois as micaretas, que, como na Bahia isso é assunto sério, tiveram o nome definido em concurso de A Tarde, em seus tempos de glória, e foram se adiantando ao meio da quaresma para começar no próprio próximo sábado de depois do carnaval, que ninguém é de ferro.

 

Nós no Maranhão também tivemos práticas de entrudo, com direito a seringa de água — nem quero saber de quem as enchia com outros líquidos —, pó de arroz ou farinha de tapioca ou maizena, até os mais civilizados confete e serpentina ou ao proibido rodó-lança-perfume, e corso com os carros enfeitados e gente dependurada, e baile de máscara, de dominó e com anonimato garantido — quase —, e as marchinhas faziam o carnaval de rua, do bloco de sujo, ser democrático. Hoje já incorporou as práticas gerais, escola de samba com regra, bloco fechado com abadá.

Mas o carnaval é resistente. Os blocos abertos ressurgiram com força e hoje centenas estão registrados no Rio e em São Paulo e em todo o País, o que não impede que uma multidão de grupos informais, com todo tipo de instrumento, carregue alegria para todo lado, sem falar no Galo da Madrugada que já não cabe no Recife e ganha o mundo.

 

Alegria e brincadeira Brasil afora, agora que as pandemias, a de vírus e a outra, ficaram para trás. Sem preconceito, discriminação, na mistura de toda gente, que todos somos, direta ou indiretamente, herdeiros da África e da cultura que ela aqui construiu.

 

José Sarney, ex-presidente