O rádio é visto como uma forma de comunicação obsoleta por muita gente, mas ele pode ser a diferença entre a vida e a morte para a Ucrânia

A notícia de que a BBC começou a transmitir programas de rádio em ondas curtas para a Ucrânia pegou muita gente de surpresa, e deixou o Jovem™ coçando a cabeça. Que diabos são ondas curtas, e o que é esse tal de rádio?Explicando aos millenials: Rádio é uma espécie de podcast que é transmitido por um WIFI analógico e- OK, brincadeiras à parte, o rádio foi a primeira mídia de massa, e ao contrário do que prega a MTV, ele ainda está bem vivo, não foi morto pelo vídeo.

Por muito tempo a informação era passada de boca a boca (não literalmente,) e levava um bom tempo para ser disseminada. Um dos usos dos títulos de nobreza nos tempos medievais, como Rei, era que você não precisava saber QUEM era o Rei, apenas que havia um Rei. Na antiguidade era capaz do reino entrar em guerra, ser conquistado e gente na periferia não fazer ideia do que aconteceu.

Como a imensa maioria da população era analfabeta, notícias e éditos reais eram divulgados em templos e igrejas. Só com a popularização da impressão por tipos móveis e a eventual criação dos periódicos e do jornalismo como um todo uma parcela razoável da população passou a acompanhar notícias e eventos com regularidade.

Mesmo assim havia todo o problema de distribuição, custo e tempo de produção. O conceito de mídia de massa veio mesmo com a popularização do rádio. As primeiras transmissões de entretenimento apareceram em 1920, mas só na década de 30 o rádio se tornou realmente popular. Logo o rádio era o grande companheiro das famílias.

Todo mundo se reunia de noite, para ouvir notícias, música, acompanhar seriados e novelas. Discursos políticos, novidades de conflitos em partes remotas do mundo, trazidas pela telegrafia sem fio eram rapidamente divulgadas pelo rádio.

Relativamente portátil, você só precisava de uma tomada, ou nem isso. Os velhos rádios de Galena funcionam sem tomada ou bateria, transformando diretamente a energia das ondas eletromagnéticas em sinal elétrico que soava baixinho mas soava em um fone de ouvido.

 

Os governos, claro, viram o rádio como forma de promover propaganda, a BBC de Londres se tornou o padrão de facto para rádio estatal, gerando filiais em vários lugares do mundo, além de transmitir programações específicas para cada uma das colônias inglesas.

Nos anos 1930 Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda da Alemanha Nazista estava ciente de que o rádio era o grande meio de comunicação de sua época, ideal para enfiar ideias erradas na cabeça do povo. Só que controlar as transmissões era apenas metade da história.

“O que a mídia impressa foi para o Século XIX, o rádio será para o Século XX” – Joseph Goebbels

Goebbels entendia que o povo não era exatamente rico, e os receptores de rádio ainda eram caros. A solução foi criar o Volksempfänger, o Receptor do Povo. Um aparelho de rádio com custo baixo, chegou a custar 35 Marcos, menos de uma semana de salário de um trabalhador alemão médio. E tudo com crediário, claro.

 

O Volksempfänger vinha com as estações oficiais já marcadas no dial, e com filtros para tentar evitar que estações estrangeiras fossem sintonizadas, mas o tiro saiu pela culatra. Durante a noite as condições meteorológicas facilitavam a recepção de transmissões de longo alcance, e muitos alemães passaram a sintonizar a BBC, atrás de notícias da guerra, que traziam muitas vezes até nome de soldados mortos.

Goebbels não gostou nada, tornou ilegal sintonizar rádios estrangeiras. Mesmo assim só no primeiro ano da guerra 1500 alemães foram mandados para campos de concentração pelo terrível crime de ouvir a BBC.

Em um argumento a favor dos terraplanistas, em teoria seria impossível ouvir em Berlim uma rádio transmitida de Londres, a curvatura da Terra não permitira que o sinal chegasse até lá, mas para tristeza dos terraplanilsons, um fenômeno interessante tornava isso possível.

Isso foi descoberto no tempo de Marconi, quando fez sua transmissão transatlântica em 12 de dezembro de 1901. Ele achava que as ondas de rádio acompanhariam a curvatura da Terra, e assim conseguiria transmitir uma mensagem entre a Inglaterra e o Canadá. Marconi estava 100% errado, mas para sua sorte ele deu de cara com a refração atmosférica.

Marconi não sabia mas descobriu a Ionosfera, uma camada que se situa entre 48Km e 965Km de altitude, composta de elétrons livres e moléculas, excitadas (ui!) pela radiação solar. Essas partículas foram uma espécie de escudo que reflete ondas eletromagnéticas na frequência que chamamos de rádio. Assim o sinal do Marconi subia pro espaço, era refletido, atingia o solo (ou o mar) e parte do sinal era de novo refletido.

Com isso, o sinal de rádio vai quicando entre a Terra e a ionosfera até chega no destino. Claro, há uma boa perda aí, então quando mais energia tiver o sinal original, mais chance de ser ouvido.

Uma faixa ótima para isso são as chamadas ondas curtas, com frequência entre 3MHz e 30MHz. Por décadas elas foram essenciais para transmissões de todo tipo, de estações como a BBC,  a Radio América ou a Radio Havana Cuba, mensagens militares e as famosas estações de rádio numéricas, mandando mensagens para espiões no mundo todo.

Países mais autoritários odeiam ondas curtas, pois é muito fácil você esconder um radinho de pilhas, mesmo nos campos de concentração os prisioneiros frequentemente conseguiam contrabandear ou mesmo construir rádios.

O rádio era tão importante que durante a Segunda Guerra Mundial o governo britânico construiu várias estações secretas subterrâneas espalhadas pelo país. Caso Londres fosse invadida ou destruída, as equipes se mudariam para uma dessas estações, que tinham todo o equipamento de produção e transmissão de programas, e iriam coordenar a resistência e informar a população do estado da nação.

Com o advento da Internet, da TV e dos satélites, a importância do rádio de ondas curtas foi caindo, em 2008 a BBC encerrou suas transmissões periódicas nessa faixa, só retornando muito eventualmente, em momentos de crise. E é isso que ela está fazendo agora.

O serviço de ondas curtas da BBC foi ressuscitado. Eles estão transmitindo diariamente em dois horários, de 13h às 15h, na faixa de 15730KHz, e das 20 às 22h em 5875KHz. Todo o território ucraniano é coberto pela transmissão, e os russos não têm recursos pra desviar pra tentar interferir nos sinais.

A BBC aposta que os ucranianos são mais conservadores, e ainda possuem rádios em casa. Como as babuskas adoram rádio, provavelmente a BBC está certa, mas um radinho que capte ondas curtas custa muito barato, e ainda são muito vendidos nas Ali Expresses da vida. Eu Tem alimentação por tomada, pilha, tem bateria recarregável, AM, FM e 8 faixas de ondas curtas, MP3 via USB e leitor de cartão SD. Tá na faixa dos cento e poucos reais. Em tempos de apagão, enchente e eventual guerra total termonuclear, recomendo muito.

 

Por ser uma tecnologia totalmente analógica, o rádio é bem mais simples e barato, e funciona mesmo em condições bastante degradadas. Uma transmissão bem ruim ainda é inteligível, enquanto uma transmissão digital ficaria completamente embaralhada. Por ser voz, o reconhecimento é imediato, não há apps para instalar, firmware para ser atualizado, hotspot wifi para ser acessado e configurado.

 

Você nunca está fora de alcance, e não corre risco de ser interceptado, pois você não está transmitindo nada (em tempo: isso não é 100% tecnicamente correto mas ninguém vai fazer varredura eletrônica em zona de guerra atrás de radinho de pilha).

 

Muitos anos atrás, ocorreu um apagão sério no Rio de Janeiro. Aos poucos os nobreaks foram ficando sem energia. Depois as torres de celulares foram uma a uma se desconectando, quando o combustível dos geradores acabou. Horas e horas sem luz, sem eletricidade, sem qualquer forma de comunicação. Salvou-me este bichinho aqui:

 

É um radinho de pilha, AM/FM de marca Shuray. Durante a noite consegui acompanhar pela CBN e outras rádios a situação no Estado. Foi a diferença entre não saber nada, e ter total noção do estado das coisas.

 

Não foi nenhuma internet, nenhuma supervia de informações, nenhuma maravilha tecnológica. Quem ficou no ar, firme e forte foi o bom, velho e obsoleto rádio.

 

Em 1º de agosto de 1981 a MTV ia ao ar, seu primeiro videoclipe foi “Video killed the radio star”, da banda The Buggles, promovendo a ideia de que o futuro era o videoclipe, a TV, o rádio com imagem, como dizia Black Boy, em Armação Ilimitada.

 

Os Buggles se separaram em 1982. Em 2010 a MTV transmitiu seu último videoclipe como Music Television, passando a se focar em programação mais convencional, como reality shows onde promovia valores como gravidez na adolescência. Hoje o canal que criou obras magníficas como o Liquid Television é só mais um canal de boomers tentando parecer descolados.

 

Já o rádio? Bem, o rádio vai bem, obrigado. Quem acertou mesmo foi o Queen, em Radio Gaga: mesmo tenho um safado xing-ling de marca imaginária que funciona que é uma beleza.

Fonte//tecnoblog.net/