Tradicionalmente de parca presença feminina, jornalismo esportivo tem cada vez mais a voz delas.

 

FOLHA DE SÃO PAULO

Quem pode falar sobre futebol? Há alguns anos, ao ouvir o rádio, ler o jornal ou assistir à TV, a resposta que se tinha a essa pergunta era clara: o homem. Mulheres não tinham voz nem para comentar pebolim.

 

Para alguns, normal. Nada de novo no domingo à tarde da família brasileira, com homens na sala e mulheres na cozinha. Afinal, quem jogava botão com o avô era Eduardo, e não Mônica. Mas o jogo virou, e a bola agora também está com elas.

 

Não sem dificuldades, as mulheres vêm ocupando cada vez mais espaço na cobertura esportiva, e no conteúdo dedicado ao futebol. Repórteres de campo, comentaristas e narradoras já apareciam em rádios e em canais da televisão a cabo, mas mais recentemente chegaram também à TV aberta, e não só em transmissões de futebol feminino. Agora, a Globo está às vésperas da estreia de sua primeira narradora em 55 anos.

 

Renata Mendonça

Na emissora, Renata Silveira se junta às comentaristas Ana Thaís Matos e Renata Mendonça, colunista da Folha, e à analista de arbitragem Nadine Bastos. Para Joana Thimóteo, diretora de eventos esportivos da Globo, o número de mulheres especialistas em esporte só vai crescer. “É um processo sem volta, que vai minando preconceitos e tornando obsoletos rótulos como o de ‘musa’”, diz ela.

 

Enquanto jogadores e outros profissionais envolvidos nos esportes são julgados por seus desempenhos em campo ou pela análise da partida, não é raro que atletas, técnicas e outras mulheres figurem nos programas e cadernos esportivos como musas, julgadas por sua beleza.

“A regra para as mulheres é, em qualquer área, que o primeiro comentário será sempre sobre a sua aparência”, afirma Renata Mendonça. “Torna-se irritante, quando você está mostrando seu trabalho, que os comentários sejam sempre isso. Quero que comentem minha opinião sobre futebol.”

Esse é apenas um dos obstáculos enfrentados por profissionais que se dedicam ao jornalismo esportivo, marcado pela desigualdade de gênero. Segundo o relatório “Quem Faz a Notícia”, de 2015, produzido pelo Global Media Monitoring Project, que tem o apoio da ONU, esporte é o assunto menos abordado por jornalistas mulheres, entre mais de 50 temas, nos 114 países estudados, incluindo o Brasil.

Sem repórteres, apresentadoras e comentaristas mulheres, o conteúdo das reportagens também não as representa. Entre atletas, treinadores e árbitros que aparecem em reportagens sobre esportes, apenas 7% são mulheres. E em apenas 4% das matérias sobre o assunto é delas o papel central.

Na Folha, a última atleta que apareceu em fotografia na versão impressa do jornal, na editoria de Esporte, que não tem nenhuma repórter contratada entre seus jornalistas, foi a tenista Naomi Osaka, no domingo passado, embora na última semana tenha acontecido o campeonato de futebol feminino She Believes, com as seleções de Brasil, Argentina, Estados Unidos e Canadá.

“Quando você é uma menina e gosta de futebol ou de esporte, você já cresce aprendendo que é diferente”, diz Mendonça.

 

Ana Thaís Matos conta do espanto das pessoas ao verem seu interesse, e seu conhecimento, pelo futebol. Quando criança, no caminho de volta da escola, ela costumava parar na venda de um homem que sempre lia e falava muito sobre o esporte. “Eu adorava passar lá e ficar conversando com ele, e eu via que as pessoas ficavam muito impressionadas, elas se espantavam”, afirma ela.

Nadine Bastos foi quem mais acertou na Central do Apito

Nadine Bastos, que foi árbitra-assistente do quadro da Fifa, fala da reação das pessoas quando decidiu fazer o curso de arbitragem. “A primeira impressão não era nem de preconceito, mas achavam estranho. Como era algo novo, se perguntavam ‘por que ela está aqui?’, ‘por que está fazendo isso?’.” Já formada em odontologia, ela fez o curso a convite de uma amiga, e eram as únicas duas mulheres da turma.

“Você vai entendendo que, por algum motivo, esse universo não é seu, esse é o recado que o mundo passa a você”, afirma Mendonça. “E quando começa a trabalhar, passa a entender que o fato de esse mundo não ser o seu vai influenciar nas oportunidades que vai ter. Você é uma invasora.”

“É uma coisa cultural”, diz Silveira. Formada em educação física, desde criança ela praticava balé e sapateado. Levada pelo pai, Silveira e a irmã frequentavam jogos no Maracanã, e assistiam a partidas amadoras das quais o pai participava, onde eram as únicas meninas.

Além de narradora de futebol, hoje ela é dona de uma academia de dança no Rio de Janeiro e vê como os meninos estão distantes do bailado. Assim como as meninas que querem jogar futebol comumente só começam mais tarde, enquanto meninos vão a escolinhas desde muito cedo, no balé, e na dança em geral, os homens só chegam mais velhos.

Mas o espanto e a surpresa, na sua opinião, tendem a desaparecer com o tempo. Ela conta que, em 2018, quando estreou na narração no Fox Sports, os comentários nas redes sociais sobre as partidas das quais participava eram “80% sobre a narradora e 20% sobre o jogo”. “As pessoas elogiavam, falavam mal, ficavam surpresas ou escreviam coisas como ‘vai lavar uma louça’.”

Dois anos depois, ela observa que os números praticamente se inverteram, e a maior parte das interações do público tratava da partida. “Era uma virada de página e fiquei feliz em acompanhar isso.” Contratada em dezembro pela Globo, Silveira está em fase de preparação para estrear na emissora.

Para Thimóteo, “o maior desafio é fazer com que essa presença feminina em todas as funções da transmissão seja vista com naturalidade”.

Mulheres na arbitragem

Edna Alves, firmeza no trato com os marmanjos

 

Tanto Bastos quanto Matos relatam terem se afastado das críticas de redes sociais e evitam acompanhar os comentários nocivos ao trabalho. “Gosto do debate, mas eu soube me distanciar daquelas críticas que não tinham nada a ver com meu trabalho, e isso me deixou mais confortável para continuar exercendo a minha função, que é opinar”, diz Matos. “As pessoas não estão muito preparadas para a mulher que opina, e no jornalismo esportivo, menos ainda.”

Para ela, porém, um desejo de surfar as ondas das redes sociais vem colocando em risco a cobertura esportiva.

“No contexto geral do Brasil, por conta das redes sociais, a cobertura está muito infantil”, afirma. “A gente acaba se deixando levar pela vaidade das redes e isso é um perigo, porque acabamos rompendo com a seriedade e a responsabilidade do que a gente fala. Vamos para lados extremos para poder justificar as nossas posições e muitas vezes essa posição está equivocada.”

Para Mendonça, a televisão passa por uma transição e tem aprofundado o debate. “Podemos ser melhores”, diz, frisando o papel dos comentaristas na derrubada de técnicos, massacrando treinadores após a primeira derrota. “É imprescindível que nós, jornalistas esportivos, entendamos o impacto da discussão. O esporte é tão importante quanto qualquer área e é preciso ter responsabilidade.”

Embora o jornalismo esportivo tenha entendido, segundo Mendonça, a importância da diversidade para diferentes pontos de vista sobre o assunto, marcadamente branco e masculino, ele “ainda não tem a cara que deveria ter”.